What’s going on

Na minha atual rotina de vida eu atravesso parcialmente a cidade, indo da região noroeste para a centro-sul todos os dias. São mais ou menos 7km separando esses dois pontos, ou, em outros termos, nada. O que significam 7km? Estamos dentro da mesma cidade, da mesma municipalidade. Não se muda o clima, nem os aspectos culturais, nem a comida, nem o ar, nem as companhias de água e luz. Normalmente notamos diferenças quando viajamos para um outro estado ou mesmo quando vamos da cidade grande para o interior. Mas não é o caso. Sete kilometros. Só isso.

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Eu volto pra casa de ônibus, meio-dia de sábado, e numa das paradas no Centro, mais precisamente no começo da Afonso Pena, em frente àquela Igreja Universal, eu escuto: “Boa tarde. Meu nome é X. e faço parte do Sopão. Eu gostaria de pedir aos senhores uma contribuição para que possamos continuar realizando nosso trabalho – 10 centavos, 20 centavos, o que você puder ajudar….”. A fala continua, mas o ônibus segue caminho. Eu não vi quantas pessoas ajudaram, pela minha experiência tem sempre quem ajuda, às vezes todos sacam algumas moedinhas do bolso. Mas a fala raramente é em vão.

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Eu não acho que eu more num lugar pobre. Tenho consciência de que estou em uma parte até privilegiada, uma boa região, um bom bairro, boa residência. E ainda assim, ainda sendo aqui, onde eu vivo, considerado um lugar de classes médias misturadas (da alta à mais baixa), mas ainda um lugar de classe média, ainda assim as condições do meu bairro aqui no noroeste da cidade são bem diferentes ali do centro-sul, há 7km daqui.

Lá eu vejo uma presença do estado (e eu digo em qualquer aspecto oficial, seja municipal, estadual ou federal) forte, assegurando o bem estar de quem está ali circulando com seu carro do ano, pegando seus filhos em alguma das escolas particulares, deixando os filhos nos cursinhos (de inglês, natação, esgrima, violino…), fazendo compras, fazendo negócios. Todos os dias eu subo a rua Lavras e vejo a guarda municipal marcando presença, guardando vagas para as madames que estacionam seus sedãs nessas vagas de lojas que na verdade ocupam a calçada toda, vejo a BHTrans rebocando carros…

E aí eu me lembro que há pelo menos dez anos existe aqui perto o mesmo problema: carros perto de uma faculdade que estacionam invariavelmente nas esquinas e fazem com que ônibus cheios de passageiros fiquem parados por 30 minutos. Nunca vi ali aquele adesivo informando da remoção do carro. Nunca nenhum oficial chegou ali, nessa meia hora, pra que algo fosse feito. Da mesma forma, não vejo uma guarda municipal tão forte aqui na porta da escola estadual ao lado. A polícia está longe de fazer as rondas por aqui como faz por lá, ninguém nunca quis saber de fazer praças por estes cantos, muito menos fontes.

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Enquanto eu volto pra casa, no segundo ônibus do trajeto, vou pensando naquela mulher pedindo contribuições para o Sopão, pensando que ela está andando pra lá e pra cá, de ponto em ponto… E que muita gente depende dela. Que o trabalho dela e de outros ajudam a tantos que não têm o que comer. E penso nas pessoas que ajudam, nas pessoas que estão num ponto de ônibus no Centro, que vão pegar também talvez dois ou mesmo mais ônibus, que vão demorar a chegar em casa, ou no trabalho, que trabalham nos fins de semana (quem não?), que têm família, que não têm carro, que não têm dinheiro.

Quem tem dinheiro? Quem pode ajudar mais? Quem pode ajudar de verdade?

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Lá na região Centro Sul eu vejo os carros, as crianças, os adolescentes, os pais buscando os filhos na escola ou mesmo os estudantes indo a pé para as suas casas ali do lado, ali pertinho. Lá, de onde essas pessoas nunca saem, tudo acontece da maneira certa: a polícia, as escolas, as notícias. Lá a moda segue os padrões europeus, pessoas sentam em cafés no meio da tarde de terça-feira e as livrarias pequenas, nas quais quase ninguém entra, são mantidas como símbolo da região da cidade. Lá ninguém lembra que existe mendigo e a pobreza desaparece ao lado dos Ray Bans.

Lá não tem moça do Sopão.

*Ao som de Marvin Gaye – What’s Going On

2 Comentários

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2 Respostas para “What’s going on

  1. Lela

    Amei o post. Me pego pensando a mesma coisa sempre, já que saio da mesma região e vou para a mesma região todos os dias, só que de pontos diferentes, olhando da janela do metrô e depois da janela do Circular 01.

    No vagão entupido sempre tem uma mãe com uma criança de colo, com bolsa, mochila e sacola e a demonstração de que seu dia será corrido, puxado e com um milhão de etapas e, no segundo, na hora do almoço, se preciso ir até a Savassi ou ao Pátio, sempre tem algum aluno do Marista, sei lá, entrando na Manoel Bernardes pra comprar um Rolex (ok, exagerei…kkkkkkkk mas você captou).

    Sabe que mais eu penso? São as pessoas do segundo grupo as que “chegam lá” e acabam se tornando líderes regionais, nacionais e de grandes empresas. Como é que esse pessoal um dia vai botar a mão na consciência para promover ações de inclusão se eles não sabem direito nem qual é o ambiente “dos outros”?

    • Olivia

      Pois é, Lela, a gente que vê esses dois extremos. E isso em BH, meio roça, imagina as diferenças no Rio e em Sao Paulo? Mas eu fico realmente chocada como essas pessoas vivem outra realidade, sabe. Elas nunca precisam sair dali daquela Nárnia pra nada, então não sabem de droga nenhuma que acontece, acham que tudo está perfeito e aí enchem a boca pra criticar bolsa família e por aí vai. Fácil, né.

      E realmente, eu fico puta pq sao eles que chegam lá mesmo. Quando q a gente pôde parar de trabalhar na vida? Desde os 16 anos, ou, eu trabalho praticamente sem parar. Aquele povo ali não tem preocupação nenhuma, tem tempo pra se dedicar aos estudos e as conexoes pra coloca-los nos lugares certos na hora certa. É foda. Pra eles tudo é fácil, tem gente ali que nunca andou de bus, porque sempre foi a pé ou a mae buscou na escola e fez 18 anos e ganhou carro zero do ano.

      Mas o q me deixa mais puta é q lá nao pode ter mendigo, aí quem ajuda é quem tem menos. Véi.

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